Três
dos filmes mais cotados pro Oscar 2013 partilham do mesmo tema: a busca
por justiça. É interessante notar, porém, que cada um deles trata desse
assunto já naturalmente complicado de forma diferente e, à sua maneira,
provocadora.
O mais convencional deles é LINCOLN, que vem com o combo completo de produção de pedigree: drama histórico, Spielberg, Daniel Day-Lewis,
lendária figura histórica americana e 12 indicações ao Oscar. Com uma
vida altamente cinematográfica em mãos, Spielberg decidiu sabiamente
concentrar-se em um período da vida de Abraham Lincoln: o ano final da
Guerra Civil nos EUA e a votação pela abolição da escravatura. Conciliar
os diferentes gêneros que LINCOLN se propõe não é tarefa fácil,
pois é ao mesmo tempo uma biografia, um filme de tribunal/votação, um
retrato de uma época e, também, um filme sobre justiça. Não só a justiça
com o legado de Lincoln (já que hoje estamos felizmente na posição
confortável de saber o quão certo ele estava ao lutar pelo fim da
escravidão), mas também justiça com a população negra que viveu pelo
menos dois séculos em uma América escravocrata. Por isso mesmo, é curioso que LINCOLN
dê tão pouca atenção a personagens negros, como se a grande questão da
liberdade discutida pelo filme fosse mera abstração. Isso acaba por
tornar a história um tanto distante, lembrando às vezes os piores
momentos de AMISTAD.
Porém, o que salva LINCOLN do didatismo simplório são os excelentes diálogos de Tony Kushner, trabalhando novamente com Spielberg depois de MUNIQUE. Na verdade, LINCOLN se sustenta quase que totalmente por seus diálogos, onde conversas íntimas (iluminadas pela luz mítica de Janusz Kaminski)
se tornam discussões filosóficas sobre o direito à vida, à igualidade
e, claro, a justiça. Os melhores momentos do filme não se dão nos
acalorados debates no Congresso americano, mas nos momentos meditativos
em que Lincoln (Daniel Day-Lewis, em inteligentemente discreta atuação)
conversa com gente comum, ou conta suas lendárias anedotas.
Se a contemplação é o forte de LINCOLN, a explosão é o forte de DJANGO LIVRE, mais um delírio paródico de Quentin Tarantino. Assim como em BASTARDOS INGLÓRIOS
(que cada vez mais se confirma pra mim como o melhor filme do diretor),
Tarantino manipula o conceito de história através da linguagem do
cinema: dessa vez, a escravidão é o tema, e o gênero cinematográfico é o
western. O contraponto com LINCOLN é inevitável: se no
filme de Spielberg os negros são praticamente invisíveis e tem sua vida
decidida por homens brancos de peruca, no filme de Tarantino é um negro
que vai pegar sua liberdade na marra, nem que tenha que matar ou
explodir (literalmente) quem estiver no seu caminho.
Vingança
é mais do que um tema para Tarantino - é um gênero cinematográfico em
si, e de certa forma todos os seus filmes pertencem a ele (especialmente
os três últimos). A mais interessante característica do diretor é ver
como ele consegue, através do mais descarado pastiche, tornar uma obra
tão pessoal. No caso de DJANGO LIVRE, temos nada mais que um buddy movie,
com uma dupla de justiceiros, um branco e um negro, um engraçadinho e
outro sério, em busca de justiça. Só que nesse caso, é o negro o
protagonista sério, o que recontextualiza toda uma cinematografia. Além
disso, é o branco que ajuda o negro a atingir seus objetivos e se tornar
uma pessoa melhor, subvertendo a noção do "Super Duper Magical Negro" cunhada por Spike Lee (que aliás criticou muito o filme sem vê-lo pelo uso constante da palavra nigger). É o branco (Christoph Waltz, divertidamente irônico) que ajuda o protagonista negro (Jamie Foxx, que não compromete, mas eu ainda preferiria ver Will Smith ou Michael K. Williams) em sua missão - salvar a esposa de Django, Broomhilda (Kerry Washington, como sempre ótima mesmo em um papel ingrato) das mãos de um latifundiário sem escúpulos (Leonardo DiCaprio,
ótimo de tão exagerado). Mesmo certos simbolismos que tem sutileza zero
(Django chicoteia um homem branco!) despertam um prazer anárquico pouco
visto no cinema americano.
É óbvio que, como em todo filme de Tarantino, há uma explosão de violência e DJANGO LIVRE
não economiza nas cenas sangrentas. Porém, uma das coisas que mais
gosto em Tarantino é como ele sabe que existem cenas em que a violência
pode ser cômica (ele praticamente inventou esse "estilo" com o tiro na
cabeça no banco de trás do carro em PULP FICTION e outras em que a violência é mórbida, triste e ou até mesmo infilmável. Existem momentos em DJANGO LIVRE
que parecem saídos de uma versão politicamente incorreta de "Os
Trapalhões"; já outros que lembram um documentário bastante fiel sobre a
escravidão. Mesmo o odioso personagem de Samuel L. Jackson, o "Uncle Tom" mais nojento e revoltante que se pode imaginar, consegue o milagre de ser uma espécie de cartoon e
um retrato realista não só de como alguns negros se portaram durante a
escravidão, mas também como o cinema depois passou a retratar todos os negros.
A busca tarantinesca por justiça é repleta de paródia e exageros. Nada poderia ser mais diferente da noção de justiça orquestrada por Kathryn Bigelow (e seu roteirista Mark Boal) em A HORA MAIS ESCURA,
um dos filmes mais maduros e moralmente complexos do cinema americano
em muito tempo. A história se concentra na busca do governo americano
por Osama Bin Laden, e foca no período de oito anos em que Maya, uma
agente da CIA (Jessica Chastain, excelente), se dedica à caçada do homem mais procurado do planeta. A HORA MAIS ESCURA
está envolto em polêmica, especialmente porque Boal teve como
colaboradores agentes especialmente envolvidos na morte de Bin Laden e o
filme tem cenas que mostram como os EUA torturaram da forma mais vil
suspeitos de envolvimento com o terrorismo.
Uma coisa é mostrar a tortura (ou EIT - enhanced information technique, um
eufemismo pomposo) em "24 Horas" envolta no heroísmo inabalável de Jack
Bauer. Outra é mostrar, em tom documental e sem nenhum sentimentalismo,
um homem com uma coleira ser trancado dentro de uma caixa. Toda a
controvérsia em torno de A HORA MAIS ESCURA (a produção do filme
está para ser investigada pelo Senado americano) se dá especialmente
porque Bigelow tem a atitude corajosa de não apresentar de forma
moralista nenhum julgamento de valor com relação ao que é mostrado, o
que leva espectadores menos atentos a acharem que estão assistindo a um
discurso pró-tortura. Contudo, prestando mais atenção ao filme,
percebe-se que, sutilmente, a diretora apresenta seu ponto de vista.
Afinal de contas, é só quando abandona a tortura e passa a utilizar
técnicas de inteligência que Maya consegue a pista que vai levar ao
esconderijo de Bin Laden.
As
tão comentadas cenas de tortura, porém, ocorrem na meia hora inicial do
filme, e nas próximas duas horas o que se apresenta é um thriller dos
mais engenhosos, onde se tem um drama investigativo de primeira linha,
cenas de suspense espetaculares e, especialmente, uma investigação
profunda sobre os valores da justiça. Afinal de contas, a morte de Bin
Laden também representa de certa forma a morte dos preceitos
democráticos que fundaram os EUA? O quanto de vingança há na justiça?
Quem define os limites entre crime e mero cumprimento de uma missão? Mas
essas grandes questões não seriam nada sem o drama humano que ele
carrega, e se vê em cada um dos vários personagens (em grande elenco que
inclui James Gandolfini, Edgar Ramirez, Stephen Dillane e a sempre luminosa Jennifer Ehle) o peso da responsabilidade que eles carregam.
A meia hora final de A HORA MAIS ESCURA,
que reencena praticamente em tempo real a entrada dos soldados
americanos no esconderijo de Bin Laden, atesta o talento de Bigelow para
sequências de ação eletrizantes. É uma aula de cinema que deixa o
espectador sem se mover, aguardando o momento-chave. E, quando acontece,
é ao mesmo tempo uma catarse e um anti-clímax. Finalmente um filme que
narra o zeitgeist pós-11/9 com a seriedade e profundidade que ele merece.
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