15 de janeiro de 2013

iHate LINCOLN, DJANGO LIVRE e A HORA MAIS ESCURA


Três dos filmes mais cotados pro Oscar 2013 partilham do mesmo tema: a busca por justiça. É interessante notar, porém, que cada um deles trata desse assunto já naturalmente complicado de forma diferente e, à sua maneira, provocadora.


O mais convencional deles é LINCOLN, que vem com o combo completo de produção de pedigree: drama histórico, Spielberg, Daniel Day-Lewis, lendária figura histórica americana e 12 indicações ao Oscar. Com uma vida altamente cinematográfica em mãos, Spielberg decidiu sabiamente concentrar-se em um período da vida de Abraham Lincoln: o ano final da Guerra Civil nos EUA e a votação pela abolição da escravatura. Conciliar os diferentes gêneros que LINCOLN se propõe não é tarefa fácil, pois é ao mesmo tempo uma biografia, um filme de tribunal/votação, um retrato de uma época e, também, um filme sobre justiça. Não só a justiça com o legado de Lincoln (já que hoje estamos felizmente na posição confortável de saber o quão certo ele estava ao lutar pelo fim da escravidão), mas também justiça com a população negra que viveu pelo menos dois séculos em uma América escravocrata. Por isso mesmo, é curioso que LINCOLN dê tão pouca atenção a personagens negros, como se a grande questão da liberdade discutida pelo filme fosse mera abstração. Isso acaba por tornar a história um tanto distante, lembrando às vezes os piores momentos de AMISTAD.

Porém, o que salva LINCOLN do didatismo simplório são os excelentes diálogos de Tony Kushner, trabalhando novamente com Spielberg depois de MUNIQUE. Na verdade, LINCOLN se sustenta quase que totalmente por seus diálogos, onde conversas íntimas (iluminadas pela luz mítica de Janusz Kaminski) se tornam discussões filosóficas sobre o direito à vida, à igualidade e, claro, a justiça. Os melhores momentos do filme não se dão nos acalorados debates no Congresso americano, mas nos momentos meditativos em que Lincoln (Daniel Day-Lewis, em inteligentemente discreta atuação) conversa com gente comum, ou conta suas lendárias anedotas.

No clique abaixo, DJANGO LIVRE e A HORA MAIS ESCURA


Se a contemplação é o forte de LINCOLN, a explosão é o forte de DJANGO LIVRE, mais um delírio paródico de Quentin Tarantino. Assim como em BASTARDOS INGLÓRIOS (que cada vez mais se confirma pra mim como o melhor filme do diretor), Tarantino manipula o conceito de história através da linguagem do cinema: dessa vez, a escravidão é o tema, e o gênero cinematográfico é o western. O contraponto com LINCOLN é inevitável: se no filme de Spielberg os negros são praticamente invisíveis e tem sua vida decidida por homens brancos de peruca, no filme de Tarantino é um negro que vai pegar sua liberdade na marra, nem que tenha que matar ou explodir (literalmente) quem estiver no seu caminho.

Vingança é mais do que um tema para Tarantino - é um gênero cinematográfico em si, e de certa forma todos os seus filmes pertencem a ele (especialmente os três últimos). A mais interessante característica do diretor é ver como ele consegue, através do mais descarado pastiche, tornar uma obra tão pessoal. No caso de DJANGO LIVRE, temos nada mais que um buddy movie, com uma dupla de justiceiros, um branco e um negro, um engraçadinho e outro sério, em busca de justiça. Só que nesse caso, é o negro o protagonista sério, o que recontextualiza toda uma cinematografia. Além disso, é o branco que ajuda o negro a atingir seus objetivos e se tornar uma pessoa melhor, subvertendo a noção do "Super Duper Magical Negro" cunhada por Spike Lee (que aliás criticou muito o filme sem vê-lo pelo uso constante da palavra nigger). É o branco (Christoph Waltz, divertidamente irônico) que ajuda o protagonista negro (Jamie Foxx, que não compromete, mas eu ainda preferiria ver Will Smith ou Michael K. Williams) em sua missão - salvar a esposa de Django, Broomhilda (Kerry Washington, como sempre ótima mesmo em um papel ingrato) das mãos de um latifundiário sem escúpulos (Leonardo DiCaprio, ótimo de tão exagerado). Mesmo certos simbolismos que tem sutileza zero (Django chicoteia um homem branco!) despertam um prazer anárquico pouco visto no cinema americano.

É óbvio que, como em todo filme de Tarantino, há uma explosão de violência e DJANGO LIVRE não economiza nas cenas sangrentas. Porém, uma das coisas que mais gosto em Tarantino é como ele sabe que existem cenas em que a violência pode ser cômica (ele praticamente inventou esse "estilo" com o tiro na cabeça no banco de trás do carro em PULP FICTION e outras em que a violência é mórbida, triste e ou até mesmo infilmável. Existem momentos em DJANGO LIVRE que parecem saídos de uma versão politicamente incorreta de "Os Trapalhões"; já outros que lembram um documentário bastante fiel sobre a escravidão. Mesmo o odioso personagem de Samuel L. Jackson, o "Uncle Tom" mais nojento e revoltante que se pode imaginar, consegue o milagre de ser uma espécie de cartoon e um retrato realista não só de como alguns negros se portaram durante a escravidão, mas também como o cinema depois passou a retratar todos os negros.
 

A busca tarantinesca por justiça é repleta de paródia e exageros. Nada poderia ser mais diferente da noção de justiça orquestrada por Kathryn Bigelow (e seu roteirista Mark Boal) em A HORA MAIS ESCURA, um dos filmes mais maduros e moralmente complexos do cinema americano em muito tempo. A história se concentra na busca do governo americano por Osama Bin Laden, e foca no período de oito anos em que Maya, uma agente da CIA (Jessica Chastain, excelente), se dedica à caçada do homem mais procurado do planeta. A HORA MAIS ESCURA está envolto em polêmica, especialmente porque Boal teve como colaboradores agentes especialmente envolvidos na morte de Bin Laden e o filme tem cenas que mostram como os EUA torturaram da forma mais vil suspeitos de envolvimento com o terrorismo. 

Uma coisa é mostrar a tortura (ou EIT - enhanced information technique, um eufemismo pomposo) em "24 Horas" envolta no heroísmo inabalável de Jack Bauer. Outra é mostrar, em tom documental e sem nenhum sentimentalismo, um homem com uma coleira ser trancado dentro de uma caixa. Toda a controvérsia em torno de A HORA MAIS ESCURA (a produção do filme está para ser investigada pelo Senado americano) se dá especialmente porque Bigelow tem a atitude corajosa de não apresentar de forma moralista nenhum julgamento de valor com relação ao que é mostrado, o que leva espectadores menos atentos a acharem que estão assistindo a um discurso pró-tortura. Contudo, prestando mais atenção ao filme, percebe-se que, sutilmente, a diretora apresenta seu ponto de vista. Afinal de contas, é só quando abandona a tortura e passa a utilizar técnicas de inteligência que Maya consegue a pista que vai levar ao esconderijo de Bin Laden. 

As tão comentadas cenas de tortura, porém, ocorrem na meia hora inicial do filme, e nas próximas duas horas o que se apresenta é um thriller dos mais engenhosos, onde se tem um  drama investigativo de primeira linha, cenas de suspense espetaculares e, especialmente, uma investigação profunda sobre os valores da justiça. Afinal de contas, a morte de Bin Laden também representa de certa forma a morte dos preceitos democráticos que fundaram os EUA? O quanto de vingança há na justiça? Quem define os limites entre crime e mero cumprimento de uma missão? Mas essas grandes questões não seriam nada sem o drama humano que ele carrega, e se vê em cada um dos vários personagens (em grande elenco que inclui James Gandolfini, Edgar Ramirez, Stephen Dillane e a sempre luminosa Jennifer Ehle) o peso da responsabilidade que eles carregam. 

A meia hora final de A HORA MAIS ESCURA, que reencena praticamente em tempo real a entrada dos soldados americanos no esconderijo de Bin Laden, atesta o talento de Bigelow para sequências de ação eletrizantes. É uma aula de cinema que deixa o espectador sem se mover, aguardando o momento-chave. E, quando acontece, é ao mesmo tempo uma catarse e um anti-clímax. Finalmente um filme que narra o zeitgeist pós-11/9 com a seriedade e profundidade que ele merece.

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